A pinga na medicina popular de Itapetininga é uma tradição antiga, que deu origem à prática conhecida como “pingoterapia.”
Ao contrário dos tempos atuais, nos quais as doenças são tratadas com antibióticos e evitadas por meio de vacinas desenvolvidas por cientistas, houve um período em que as enfermidades eram abordadas com receitas que tinham como base a famosa pinga, criadas por pessoas com diversos talentos, embora não incluíssem o da farmacologia, nas regiões rurais do Brasil. Itapetininga não foi uma exceção, e até a década de 1960, essa prática era bastante comum, principalmente entre aqueles que não tinham recursos financeiros para consultar um médico. A cidade contava com diversas destilarias, tanto na zona rural quanto no centro, que forneciam bares, viajantes e apreciadores da bebida, juntamente com suas supostas propriedades curativas.
A famosa cachaça Velho Barreiro também tem raízes em Itapetininga. Na década de 1960, um imigrante austríaco chamado Adolf Höfer, que morava na Fazenda Barreiro, que ele próprio possuía, teve a brilhante ideia de criar essa cachaça. O nome da bebida foi inspirado na fazenda que se tornou o berço dessa icônica bebida brasileira.
Naquela época, o escritor e historiador Francisco Vasconcellos visitou Itapetininga e, em 1971, compartilhou suas experiências na revista Brasil Açucareiro. Ele ficou impressionado com os habitantes da cidade, que usavam a pinga para tratar uma variedade de problemas de saúde, tanto físicos quanto mentais, prática que ele chamou de “pingoterapia.” A pinga é o nome paulista para a aguardente de cana-de-açúcar, embora em outras regiões do Brasil seja chamada por diversos outros nomes, como cachaça, caninha, cangibrina e assim por diante. “Pinga” é essencialmente um termo paulista com raízes na cultura caipira.
Vasconcellos relatou que, nos bairros rurais e até na área urbana de Itapetininga, o consumo de pinga era comum. Ele testemunhou desde crianças até idosos tomando goles dessa bebida, e era mais provável que um anfitrião oferecesse uma dose de pinga em vez de café, como era o costume em outros lugares.
A pinga era consumida por prazer, para receber visitantes, abrir o apetite e, também, como remédio. Dona Maria José Paes, uma benzedeira, parteira e curandeira de 90 anos da antiga Vila Brasil, realizava consultas gratuitas, pois considerava isso um dom e um ato de caridade. Ela usava a pinga em suas garrafadas e alegava: “Se ponhô a pinga pra remédio, é remédio.” Para as mulheres que passavam pelo parto, ela recomendava banhos de água com pinga e, em seguida, a ingestão de goles de pinga infundida com uma folha chamada Braço de Rei de Flor Vermelha. Ela ensinava essa prática às aprendizes de parteiras, que eram chamadas de “sujoas” na região.
Para tratar problemas pulmonares, dona Maria recomendava uma garrafada contendo 3 colheres de sopa de pinga, limão galêgo, quina, salsa e sabuqueiro, em doses que apenas ela sabia medir. Para dores de dente, a solução era fazer bochechos com pinga pura.
Outra moradora, senhora Olga Nicolau de Oliveira, herdou receitas de garrafadas com pinga e uma mistura de ervas e raízes para tratar diversas condições. Geralmente, ela usava meia garrafa de pinga e completava com cascas, raízes e ervas em infusão. Algumas de suas receitas incluíam:
- Para problemas de estômago, usava pinga com casca de sassafrás, a ser consumida antes das refeições.
- Para ânsias de vômito, usava pinga com folhas de arruda, a ser tomada 2 ou 3 vezes ao dia.
- Para resfriados, recomendava café com pinga, também conhecido na região como chimarrão.
Em frente ao antigo cinema Olana, na Rua Monsenhor Soares, havia um bar chamado “21 Estados,” de propriedade do senhor Braz Ribeiro, um itapetiningano orgulhoso de suas raízes caipiras. O local era frequentado por bebedores, boêmios e pessoas com diversos problemas de saúde, tornando-o uma mistura de bar e farmácia popular. O destaque do lugar era o estoque de 25 tonéis de vidro, repletos de pinga, cada um com uma torneirinha que oferecia pinga com limão, pinga com passas, pinga com gingibirra, pinga com pêra, pinga com maçã e muitas outras variedades, que eram consumidas como aperitivos e refrescos. Além disso, havia garrafas destinadas à “pingoterapia,” contendo uma variedade de ervas, raízes e cascas, prometendo curar doenças e até restaurar a vitalidade masculina.
O senhor Braz vendia doses de pinga com semente de umburana para combater a gripe, pinga com raiz de caiapiá para dor de barriga, pinga com sassafrás para problemas estomacais e tosse, pinga com folha de carqueja para o fígado, pinga com folha de guaco para tosse, pinga com casca de quina para dores abdominais e para reduzir a febre, e pinga com raiz de puaia, limão galego e quina.
Em Varginha, um distrito de Itapetininga, o popular “quentão” das festas juninas, uma mistura de pinga, gengibre, cravo e canela, era amplamente utilizado no tratamento de resfriados e até mesmo consumido por crianças.
Aparecida Gkionis, que trabalhava como bibliotecária na Biblioteca Municipal de Itapetininga e era professora do Movimento Brasileiro de Alfabetização, colecionava receitas compartilhadas por seus alunos. Entre todas, a mais excêntrica era para crises reumáticas, que envolvia derramar uma garrafa de pinga em um formigueiro de formigas cabeçudas, coletar as formigas (agora embriagadas) e colocá-las em uma garrafa, adicionando pinga e deixando-as em conserva. Depois, a garrafa era enterrada no mesmo formigueiro, sendo desenterrada apenas às sextas-feiras. Nesse momento, um pouco da pinga era consumido e aplicado na área afetada pela reumatismo.
Dessa forma, a medicina popular baseada na pingoterapia em Itapetininga fazia uso da famosa pinga como um elixir para tratar uma variedade de problemas de saúde. Embora não haja comprovação científica da eficácia dessas receitas, a importância cultural dessa prática é, sem dúvida, digna de documentação e estudo. Fica a imaginação sobre quais tipos de garrafadas teriam sido criadas se a pandemia que vivenciamos hoje tivesse ocorrido durante o auge da pingoterapia.